O primeiro som


Nascer dói todos os dias

Crescer dói


O primeiro choro

As primeiras palavras

O aprendizado


Nascer também não dói


Onde há lágrimas também há sorrisos

Onde existem monossílabas existirão frases com melodias



Rosalina Herai






sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O Milagre




  

Eu adorava ir visitar o meu avô que morava num sitio entre as cidades de Cunha, no estado de São Pulo e Parati, no estado do Rio de Janeiro. Um lugar muito frio que tornava a cozinha o ambiente mais aconchegante da casa em função de um fogão a lenha que ficava aceso o dia todo. Meu avô adorava contar histórias e eu em ouvi-las, sempre sentados ao redor do fogão de lenha com um bule de alumínio ao lado cheio de um café fresco e quentinho. Entre tantas histórias que meu avô nos contava, tinha uma em especial que ele sempre repetia e que eu jamais esqueci. Contava que em uma pequena cidade, um velho padre pedia sempre a Deus que lhe permitisse assistir a um milagre antes de sua morte para ele voltar a ter a mesma fé da juventude, pois ele vinha assistindo a tantas maldades no mundo que começou a questionar o tamanho da sua.


Dizia que vivia para Deus desde pequeno e que ouvira falar de tantos milagres acontecidos com o padre Cícero que ele não achava justo e questionava do porque ele também não poder assistir a um milagre na sua igreja. Garantia que reconheceria qualquer milagre, pois tudo que o viesse de Deus ele saberia na hora.


Numa determinada noite, um menino pedinte bateu à porta da igreja e pediu-lhe abrigo. O padre deixou que ele dormisse dentro da igreja e ele se alojou num banco, mas sem nada para se cobrir.


No dia seguinte, o menino foi acordado aos gritos pelo padre que não acreditou no que vira. O menino estava coberto com o manto da imagem sagrada de nossa senhora.


- Este manto é da mãe de Jesus, você tem idéia do seu significado?


- Tenho padre, mas te dou minha palavra que não o peguei


- Então quem o pegou? Foi o São Jorge?


- Não sei padre, só sei que a noite alguém veio me cobrir


- Deixa de ser mentiroso, menino. Eu te deixo dormir aqui dentro e assim que você agradece o acolhimento?


- Padre eu não pegaria o manto mesmo que tivesse mais frio do que foi esta noite.


- Saia já daqui. Além de tudo ainda é mentiroso?


O menino saiu cabisbaixo jurando não ter pegado o manto durante a noite, embora estivesse com muito frio. Na noite seguinte o padre, que não permitia qualquer desrespeito às coisas de Deus, não deixou que o menino voltasse a dormir dentro da igreja e a trancou, obrigando-o a dormir num degrau da escada que dava acesso à porta principal. A noite estava mais fria do que a anterior e o menino se encolheu dormindo sobre algumas folhas de papelão que encontrara jogada na praça da matriz.


No dia seguinte, muito cedo ainda, o padre levantou e viu novamente o menino coberto pelo manto de nossa senhora e quando foi acordá-lo, percebeu que a porta estava trancada e não havia como o menino ter entrado. Sem acordá-lo, entrou na igreja e viu que nossa senhora estava virada com os braços estendidos em direção ao menino, sem o cristo no colo, como se estivesse chamando-o para o seu lugar.


O padre voltou seu olhar para o menino e não o viu mais e voltando seus olhos para a imagem, viu o menino Jesus em seu colo novamente e caiu de joelhos pedindo perdão por não ter reconhecido o próprio filho de Deus.


Jamais aquele padre foi o mesmo homem. Transformou-se completamente e passou a distribuir entre os mais pobres da cidade tudo o que tinha de valor na sua igreja e os demais moradores começaram a acreditar que ele estava ficando louco e escreveram para o Bispo que mandou alguns de seus auxiliares até a cidade para averiguar o que estava acontecendo. O Padre lhes contou do milagre, mas mesmos eles não acreditaram e orientaram para ele parar com aquilo e não mais falar sobre o que havia acontecido.


O padre disse-lhes que isso era impossível, pois não podia negar pela segunda vez o milagre e pediu que conversassem com o Bispo e não o tirasse daquela igreja, mas pouco tempo depois recebeu a confirmação de que seria transferido para outra congregação. O padre não suportou e caiu doente quando chegava outro para assumir o seu lugar e depois de alguns dias ele veio a falecer e contam que naquele mesmo instante a Imagem de Nossa Senhora derramou lágrimas para o espanto do novo padre e o desespero do bispo que fora chamado ao Vaticano para explicar o que estava acontecendo naquele lugar, onde já estava havendo romarias de todo o nordeste para presenciar o segundo milagre com aquela imagem e adorar o túmulo do padre que passou a ser considerado um santo para os moradores daquela região.


Eu não sei se esta história era verdadeira ou fora criada pela imaginação fértil de meu avô, mas salvou minha vida muitos anos depois. Eu trabalhava no centro de São Paulo e já com uns 20 anos de idade quando estava tomando lanche vi um garoto entrando na lanchonete para pedir alguma ajuda sendo hostilizado pelos clientes e pelo dono do estabelecimento e, não sei o porquê, veio à mente esta história do meu avô e pedi ao dono da lanchonete que deixasse o garoto pedir o que quisesse que eu teria o maior prazer em pagar. Ele sentou-se ao meu lado e perguntou-me se podia pedir um X-Salada que, segundo ele, jamais havia experimentado. Eu disse que sim e que podia pedir também um refrigerante para acompanhá-lo. Ele não era de muita conversa, mas mesmo assim consegui que ele pronunciasse algumas palavras. Ao sair, ele olhou bem para os meus olhos e disse que jamais esqueceria o meu rosto.


Depois de quase dez anos, eu fui ajudar um amigo oficial de justiça, num fim de semana, entregar algumas intimações, visto que ele havia sofrido recentemente um acidente de carro e não estava conseguindo dirigir. Quando fomos entregar a última intimação, já por volta das 19 horas em uma favela no bairro do Ipiranga, na cidade de São Paulo, fomos cercados por três marginais que roubaram tudo o que tínhamos no bolso e ainda nosso carro. Quando iam sair, abrindo a carteira do meu amigo perceberam o distintivo de oficial de justiça e desceram do carro nos obrigando a entrar com eles em um beco, bem no meio da favela dizendo que tinham um tratamento especial para “autoridades”. Ali eu tinha a certeza de que o pior iria nos acontecer e quando estávamos caminhando e já pedindo clemência por nossas vidas, um sujeito forte que vinha na direção contrária à nossa, fixou os olhos no meu rosto e depois que passamos, ele falou.


- Espera aí


Os três marginais pararam e um deles respondeu:


- O que foi Xerife?


- Conheço este rapaz e ninguém vai mexer com ele.


- Mas eles são “autoridades”


- Mesmo que fosse o capeta. Ninguém vai mexer com eles e pode devolver tudo o que vocês roubaram.


Não entendi nada do que ele estava falando e depois que devolveram todos nossos pertences, os três marginais foram andando rápido à nossa frente e este sujeito foi nos acompanhando até o carro e quando entramos nele, apoiou-se na janela e me disse:


- Jamais me esqueci do gosto daquele X-salada!






Anderson B. dos Reis





Um comentário:

Rosalina Herai disse...
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